quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Resenha - A era dos direitos




Publicado em 07/06/2010 por bobbiobrasil

A era dos direitos,
Norberto Bobbio, Editora Campus, Rio de Janeiro,1992

Norberto Bobbio, nascido em Turim em 1909 e morto na mesma cidade em 2004, foi um dos maiores filósofos políticos, além de historiador do pensamento político de uma cultura italiana, que por si mesma é rica neste campo do conhecimento. Para além de ter sido uma testemunha importante das três principais ideologias do século XX: o nazi-fascismo, o comunismo e a democracia liberal. Sistemas políticos e concepções doutrinárias que acabaram por resultar na divisão do mundo em dois blocos políticos, militares e ideológicos que subsistiu até 1989, com a queda do muro de Berlim.
A própria cultura política italiana foi representativa no confronto de idéias entre três pensadores das referidas correntes: o filósofo Giovanni Gentile (1875-1944), que apoiou o regime fascista; o historiador Benedetto Croce (1866-1952), personagem maior do liberalismo italiano e senador vitalício da república; e o pensador marxista Antonio Gramsci (1891-1937), escritor e líder do partido comunista. Desde cedo Bobbio colocou-se ao lado da resistência antifascista, rejeitando Gentile, mas tentando realizar a síntese entre os outros dois: Croce e Gramsci. Sobre a tradição da filosofia política italiana, vale remarcar que desde fins da Idade Média, se refletem na Itália as questões mais essenciais deste campo da filosofia, que tem como fim investigar a legitimação e a justificação do Estado e do governo. Desde os limites da organização do Estado frente ao indíviduo, com Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Rousseau; passando pelas relações gerais entre sociedade, Estado e moral, com Maquiavel, Augusto Comte e Antonio Gramsci; as relações entre a economia e política, com Marx, Engels e Max Weber; o poder como constituidor do indivíduo, com Foucault; até as questões sobre a liberdade, em Benjamin Constant, John Stuart Mill, Isaiah Berlin, Hannah Arendt, Raymond Aron e o próprio Norberto Bobbio; as questões sobre justiça e Direito, com Kant, Hegel, John Rawls e Jürgen Habermas; e as questões sobre participação e deliberação, com Carole Pateman, Habermas, Joshua Cohen.
Mas voltando a esta obra em epígrafe, a era dos direitos percorre os antecedentes do principal marco de conscientização dos direitos humanos e difusos, que foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris em 1948, depois do cataclisma da Segunda Grande Guerra. Logo na introdução, Bobbio nos assegura que os direitos sempre existiram, mesmo em regimes feudais, onde súditos, muito antes do advento dos cidadãos, já tinham direitos à segurança da nobreza. No capítulo sobre os fundamentos dos direitos do homem, Bobbio retorna a Kant quando define a liberdade como o mais fundamental entre os direitos fundamentais da vida, da propriedade e da justiça, esta última a própria garantia da liberdade. Reafirma também a precedência dos direitos civis e políticos diante dos direitos econômicos e sociais e acompanha Marshal na definição historiográfica obrigatória dos direitos de primeira (civis), segunda (políticos), terceira (econômicos e sociais) e quarta gerações (direitos difusos do meio-ambiente e da genética). Nesta perspectiva há que se ressaltar a corajosa tomada de posição de Bobbio quando afirma: “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas políticos”.
Se mesmo os direitos fundamentais são relativizados pela história, como a menor importância que se passou a dar ao direito da propriedade, desde o século XIX, em face da maior importância ao direito da vida, entendendo-se aí uma ameaça ao direito mais intrínseco à humanidade, que é a liberdade, como não argüir que a garantia fundamental de todos os direitos é a justiça e o estado de direito? Não serão estas as “verdades evidentes em si mesmas” a que se referia Jefferson na declaração de independência americana de 1776? Bobbio retorna a Kant que identifica a liberdade com autonomia, o direito natural do homem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é autor e, neste sentido, obrigar outros à esta mesma faculdade moral do homem, a este direito inato que lhe é transmitido pela sua própria natureza. A opção neste caso pela determinação do coletivo pelo individual é evidente, uma vez que a cada cidadão, um juízo e um voto, fundamento da própria democracia. Se nos estados despóticos, os indivíduos só têm deveres e quase nenhum direito e nos estados monárquicos os indivíduos só têm direitos privados, nos estados de direito os indivíduos vão dispor de direitos privados e também públicos, pois estes são estados de cidadãos. Cidadãos com plenos direitos garantidos pelo estado e, entre os quais, o direito de questionar o próprio estado, transformando-os desta forma em cidadãos do mundo. Se na Pax Perpetua, Kant afirma que se trata de um bem forçosamente universal, da mesma forma a plena cidadania é planetária e para além do próprio Estado. Antes de Kant, Locke já garantia a liberdade como igualdade diante da lei que, por sua vez, é a única forma de se garantir a segurança e a vida diante de poderes ilimitados do próprio Estado. Aqui, vale lembrar a citação de Milton Friedman, economista americano prêmio Nobel de 1976: a sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade irá terminar sem igualdade e sem liberdade. Quando Kant define a liberdade numa passagem da Pax Perpetua como “a liberdade jurídica e faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assentimento”, teoriza sobre a Revolução Francesa e liberta definitivamente o homem de toda forma de poder patriarcal. Tomas Paine, grande articulador da revolução americana, em seu livro Common Sense (1776), já expressa a concepção de que a sociedade é boa por natureza e o Estado um mal necessário: “a sociedade é produzida pelos nossos carecimentos; o governo, pela nossa maldade. A primeira promove a nossa felicidade positivamente, unindo em conjunto os nossos afetos; o segundo, negativamente, freando nossos vicios”.
Só a partir da Declaração de Independência americana é que os direitos do homem prevalecem sobre os deveres diante do Estado. Até 1776, seguindo a tradição dos códigos morais de Hamurabi, da Torá e das Doze Tábuas, as regras codificadas são mais das obrigações do que dos direitos. Mesmo os artigos da Carta Magna, de 1215, e do Bill of Rights, de 1689, estabelecem direitos concedidos pelo soberano, o que é totalmente inverso do espírito da Declaração americana que afirma uma democracia como soberania dos cidadãos, a partir da afirmação do princípio da maioria e da vontade/voto individual. Se a concepção individualista da sociedade for eliminada, não será mais possível justificar a democracia como uma boa forma de governo.
No último capítulo, Bobbio faz uma profissão de fé no progresso iluminista do Estado democrático de direito quando analisa a supremacia da tolerância mesmo em face da abolição crescente da pena de morte como direito justificado e razão de Estado.

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